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quinta-feira, 14 de maio de 2015

Angústia em ser objeto

A clínica não é tão fácil quanto imaginamos no início da faculdade. Nos primeiros semestres, trabalhar com psicologia geralmente significa ajudar aqueles que não conseguem se resolver sozinhos, e tudo parece se resumir em sentar numa cadeira confortável no consultório e ouvi-los pacientemente no divã para encontrar imediata e milagrosamente uma forma de aliviar seus sofrimentos. No entanto, ajuda nem sempre é o que o paciente procura e o sofrimento pode não ser algo que se queira extinguir. Portanto, o termo “paciente” aqui se aplica melhor ao analista, pois não é da noite para o dia que as mudanças ocorrem, e pode se tornar árdua a tarefa de acompanhar o analisando em sua travessia do queixoso sofrimento à responsabilização dos seus atos e ao exercício de uma postura ativa em sua vida. É aqui onde corremos o risco ou de tratar o analisando como um mero objeto de estudo – visto que precisamos, enquanto estudantes, aprender e treinar a prática –, ou de deixar transparecer uma demanda de amor através do desejo de ajudá-lo – visto que a falta de experiência e de análise nos faz tremer diante de alguns relatos dramáticos.
Sabemos que a psicanálise atende o insuportável do mundo, e costumamos subestimá-lo e imaginar que nada pode ser tão intragável se se limitar ao campo da linguagem. No entanto, percebemos na clínica que tal linguagem vai muito além de palavras e o campo simbólico é imenso e nos sufoca do outro lado da mesa, dificultando a já complexa tarefa de mantermo-nos na posição de incógnita. Averiguamos que assumir o papel de analista é tampouco simples, pois não emprestamos apenas os ouvidos, mas o próprio corpo para que outra pessoa fale tudo o que não consegue fazê-lo em outros lugares e tudo o que outros ouvidos não aguentam. Ressaltamos que esse corpo é emprestado enquanto imagem para o analisando e, no analista, a maioria das sensações fica guardada – porque deve – para ser resolvida em análise, sublimações, fantasias e afins. Entender todo esse processo não é tão fácil inclusive para quem escolhe se inserir neste contexto. Viver tudo isso é mais complexo ainda. E a universidade nos ajuda a compreender a psicanálise colecionando experiências, encaliçando os ouvidos, esgotando livros, fazendo análise.
No entanto, apesar de tudo mostrado pela teoria, não deixamos de encontrar resistências neste percurso, advindas tanto do analisando quanto de nós, aspirantes a psicanalistas. O ganho secundário proveniente da doença, por exemplo, é uma delas e toma o sujeito de tal forma que não o permite livrar-se de seus pesarosos sintomas. Ainda mais complicada é a situação de aproximação do eu com o material reprimido, deixando diversas questões emergirem ao mesmo tempo em que o sujeito se esperneia e tenta se agarrar às últimas migalhas dos sintomas arquejantes. Também transferência pode fazer-se intensa e perigosa, tornando-se uma faca de duplo gume em relação às resistências... (ler a dinâmica da transferência e a conferência da transferência).
Cabe a nós entendermos a dificuldade de um processo desta magnitude, o que já requere um empenho árduo. “A luta contra todas essas resistências constitui nosso principal trabalho durante um tratamento analítico; a tarefa de fazer interpretações não é nada em comparação com ela” (FREUD, 1996, p. ??).
Há ainda sérias consequências oferecidas pela análise, como a quebra de inibições e disfarces que o sujeito tanto se esforça para guardar consigo. Ou seja, a emersão do material inconsciente pode não trazer muitas satisfações para o sujeito se isso consistir na sua afronta à sociedade em que vive, apesar de provavelmente fazê-lo se desprender de alguns sintomas desprazerosos e derrubar em parte suas alienação e convicções diante de si mesmo.
O preço – não apenas monetário – também se torna questão importante na clínica, pois inicialmente pode se fazer alto demais para o analisando implicar-se na análise, assim como também o é para o analista, quem utiliza sua própria imagem para depósito de desejo de outrem.
Nos últimos semestres da faculdade, ao nos depararmos com a clínica, uma postura mais rígida é exigida – visto que é o analista quem conduz a análise – e pode ser tomada como frieza ao não permitir o gozo do analisando e incitar frustrações quase insustentáveis para ele. Fazer ressignificações subjetivas, cortar sessões quando as feridas são abertas e mandar o sujeito embora num momento que beira o desamparo, mas que o permite andar e pensar, pode parecer um tanto cruel. No entanto, a clínica nos aparece como uma prática de desprendimento do laço social e os mal-entendidos sempre são muito bem-vindos, o que não significa ser possível generalizar os atendimentos ao ponto de criar um manual de como levar as sessões passo-a-passo. Pelo contrário, com esta experiência também aprendemos que pôr os conceitos da psicanálise em questão a cada caso pode fazer do estudante um analista menos ortodoxo e mais aberto a aprender novas interpretações acerca do que ela ensina. Agindo desta forma, acreditamos facilitar a escuta flutuante e a apreensão do que realmente faz questão em cada caso na clínica, pois não farejamos os sintomas a fim de atribuirmos significados apressados, mas esperamos pacientemente que eles caiam em nossas mãos através, principalmente, da repetição trazida pelo analisando. Ou seja, aos poucos aprendemos a manter nossa condição de incógnita (citar Lacan) e a ouvir sem a pretensão de cura (citar o furor sanandi de Freud), respeitando a singularidade e o sofrimento alheio.
Há, inclusive, um perigoso caráter na tentativa de facilitação da análise a fim de torná-la mais rápida, barata e simples. Isso nada mais é do que pouco estudo na área e a impregnação cultural da cura imediata. Conformemo-nos com a complexidade intrínseca à análise enfim, pois aí não há pouca coisa em jogo como o problema de um dedo machucado numa partida de futebol com os amigos. A cada dia, novas questões vêm à tona e em geral mostram-se pouco parecidas com a queixa externada na primeira sessão.

A psicanálise não é o efeito de um saber do Outro sobre uma história e, sim, o feliz encontro entre as ferramentas conceituais do analista – pulsão e objeto, por exemplo – e as contingências de uma história, produzindo um caso e, no melhor dos casos, um novo sujeito. Buscamos, assim, estar próximos da possibilidade de constituir enunciados positivos sobre este saber propriamente psicanalítico, singular e inventado a cada nova situação (FIGUEIREDO, 2004, p. 81)


Adriane Ponte Cisne
(texto incompleto que exclui do meu TCC)
2014.1

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