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sábado, 20 de setembro de 2014

Primeiro trabalho, trabalho primeiro


Não queria esquecer daquela sensação de sair de casa para trabalhar – principalmente por ser longe dela – pela primeira vez depois da formatura. Foi angustiante. Muito mais que isso! Fiz planos o suficiente para lidar com diversas situações por saber que estaria viajando para onde nunca fui. Pus dificuldade em várias coisas, muitas vezes sem visível intenção, talvez porque não quisesse mesmo trabalhar, nem ir embora. Notando que espernear já não funcionava, chorei o percurso inteiro vendo que não tinha mais nada para fazer, e aceitei o que já estava imposto.

Desde os últimos semestres da faculdade, as despedidas vinham se tornando rotina, e não foram nem um pouco agradáveis. Da companhia diária dos colegas de sala, dos professores, de alguns amigos, das aulas, do prédio, dos estágios, do título de estudante, de um certo nível de irresponsabilidade aceitável... E, agora, da minha casa e da minha família, das minhas aulas de música, da academia, das saídas noturnas com os amigos. Parece um pouco dramático, mas tinha certeza de que sentiria muita falta, mesmo sabendo que para eles não passaria de um “até logo”. Vi meus dias mudarem muito rápido, mas entendi que isso aconteceria cedo ou tarde e que seria patológico se não o fizesse. Há muito tempo vinha elaborando minha saída, desacostumando-me – sem sucesso – da minha família tão presente, do meu quarto tão confortável e seguro, da minha casa tão cheia de mim. Mas arrumei uma mala pequena apenas com o necessário e sai.

Reitero: foi angustiante. Chorei, ouvi músicas, li, escrevi, chorei mais. Dormi mal, fiquei trancada, andei no sol. Dirigi, ouvi muitas músicas altas, cantei até quase perder a voz. Morei sozinha, aluguei e organizei um apartamento, lavei roupas, comprei comida, revirei algumas noites na rede desconfortável demais para a minha impaciência. Depois dormi muito por querer fazer nada, nem sequer pensar. Fiz planos para me convencer de que estaria no caminho certo.

Trabalhei. Muito! Ajudei a organizar um serviço que estava nascendo com a minha chegada, suprindo necessidades desde copos e canetas até às documentações burocráticas e chatas. Estudei mais. Conheci muita gente, fiz amigos. Fiquei conhecida e aceitei o “doutora” para quem não se interessava nem sob insistência em decorar meu nome. Aprendi muito! Lidei com o desconhecido, com autoridades, com os obstáculos peculiares ao serviço público, com a responsabilidade de ser profissional e de ser ouvida e atendida. Trabalhei minha serenidade para encarar isso e optei por não deixar o bom humor em segundo plano. Acredito que tenha dado certo e tenha conseguido contribuir um pouco.

A adaptação foi sofrida, confesso, mas foi rápida. As noites, que começavam às 4:30h da tarde e terminavam às 8h da manhã, rapidamente encurtaram diante do tanto que tive para elaborar. “Não sei nem o que fazer com tudo isso” foi o que eu disse a um amigo próximo com o qual tive muito contato também nesses dias. Mas soube o que fazer, afinal de contas: deixei acontecer. Rasguei o peito para consertar a saudade e sintonizar meus desejos. E tive “nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo”, como Milton cantou. Medo mesmo, na verdade, não tive. Se tinha algo para esquecer, não era isso, mas, sim, o conforto de uma vida facilitada por outros.

Cliniquei em 30 dias quase o que havia feito em 10 meses de estágio – em número de pessoas, e não de atendimentos, obviamente. Atendi muitas angústias e surtos, ouvi histórias diferentes, machuquei o pulso por escrevê-las em manuscrito, e ainda nem as terminei. Foram 22 vozes chorosas e/ou reclamantes e, para muitas, fui a última esperança. Para uma, fui o último recurso antes da corda no pescoço.

Ganhei pouco em cheque, mas não me deixei insatisfazer demais. Foi uma experiência que não cabe aqui e, de tão grande, parece inacreditável que caiba em um mês.

Então, agora, tenho que encarar outra despedida. Da equipe já tão engrenada, dos planos animadamente arquitetados com todos, das esperanças depositadas em mim por tantos e por mim mesma. O motivo é simples: outra instituição me encontrou, chamou-me e eu aceitei. Pelas condições de trabalho serem absolutamente mais interessantes e pela alta pressão alheia para que consentisse – família, amigos e colegas de trabalho foram unânimes –, eu disse sim a esta nova experiência que nem me deixou chamar a anterior de velha. Também pela esperança de que eu continue aprendendo e conhecendo um pouco mais do mundo profissional.

Assim, amanhã é meu último dia de trabalho aqui. Vou arrumar aquela mala pequena de novo e juntar as outras poucas coisas num matulão. Mas ainda sei que vou precisar me adaptar novamente, sem me permitir descansar demais.

Vou, mas levo uma dúvida: estou voltando para casa, e não consigo decidir se é bom ou ruim.


Adriane Ponte Cisne
11 de setembro de 2014